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ATRAVÉS

A arte, para Rosângela Dorazio, parece consistentemente tomar corpo através de fragmentos de uma janela.
Real ou imaginária, a ideia dessa passagem tem para a artista o papel de possibilitar um olhar de minúcias, de detalhes e fragmentos, que permitem enxergar pequenezas, aos poucos somadas a uma moldura maior.

Outra estratégia é uma prática que se compromete com a construção de uma imagem até que, num certo momento, ela seja seguida de um desmanche. Não se trata aqui de um desmanche completo, capaz de apagar os traços do que se constituiu até então, mas sim de uma ação que nos dá a dimensão da própria fragilidade, do erro e da efemeridade de todos os gestos vivos.

É a partir da lógica de somatória de partes, que lembram as múltiplas vidraças de uma janela, e da composição que se arremata em escorrimentos, que a série atual se apresenta.

Na verdade, a atitude construtiva (e contemplativa, também) faz parte da própria identidade da artista. Desde o início da carreira, trabalhando com gravura, Rosângela Dorazio se interessava pela transformação das matrizes, que eram recortadas e acabavam por deixar transparecer vazios, cortes e falhas. Já se configurava ali um projeto de olhar através.

Posteriormente, em seu processo de fotografar e raspar as imagens, vontade de se desfazer de uma imagem pré-estabelecida ganhou um corpo nítido e se materializou como jeito de pensar arte e vida.

Os procedimentos que compõem os desenhos da exposição Através se iniciaram com o projeto de ocupação de uma casa, o que incluía registros de objetos de uso cotidiano, como bules e xícaras grandes, desenhados em contornos com nanquim, e posteriormente recebiam manchas de café líquido, o que acabava por diluir detalhes de imagens e criar uma pigmentação de fundo, construída com a ação do acaso.

Num segundo momento, essa ação foi incorporada numa outra série realizada para o MACS (Museu de Arte Contemporânea de Sorocaba), onde a arquitetura do local era desenhada com suas respectivas colunas, paredes e perspectivas, e então recebia doses esparramadas de café.

Para além das imagens domésticas e arquitetônicas, o olhar de Dorazio voltou-se, nos últimos anos, para a observação da natureza ao redor. Uma natureza vista literalmente da janela.

Em seu trabalho atual, a artista limita a paleta do nanquim aos marrons e verdes e aplica seus traços com uma desenvoltura expressionista. Em suas escolhas compositivas, as cenas podem surgir de visões do campo, da cidade, ou das vidraças de um museu. Para além da moldura, são os pequenos banhos de café que acabam por se tornar os protagonistas da imagem. Porque são eles que batizam as cenas finais e se tornam os responsáveis por uma sensação de que aquelas paisagens, árvores, relvas, frutas, janelas e tudo mais estão de fato vivas. Em outras palavras, o café é a poção de potência para os desenhos feitos de atravessamentos feitos Através.

Nas obras da exposição, os limites entre os traços de nanquim que materializam construções de arquitetura (as janelas) e o mundo da vegetação (o que está fora) são misturados na liquidez do café. E assim, podem borrar tons e texturas, enrugar suavemente o papel, criar dúvidas sobre o uso de materiais utilizados, provocar sensações de translucidez e mistério. E, nisso tudo, celebrar um hibridismo necessário para a vitalidade da arte. Porque, sabemos nós, sem mistura não há vida.

Katia Canton, 2019

 

FOTOGRAFAR, DESENHAR, GRAVAR: DILACERAR

A pretensão da fotografia, já se sabe, é a suspensão do tempo ou, o que dá no mesmo, a condenação à morte de uma paisagem, do rosto de uma pessoa, de uma cena, coisas e acontecimentos banais ou singulares, não importa, algo que a câmera, simples ou sofisticada mas sempre uma câmera mortuária, fixa em seu interior, subtraindo o movimento que obstinadamente leva de roldão tudo o que há para os confins dos dias e noites;
 
e não pode haver beleza no movimento, já que essa, senão em ao menos no princípio, confinaria com a estabilidade, com a rigidez própria a arquitetura, aos retratos realizados em telas e nas primeira fotografias, aquelas que demandavam aos modelos horas intermináveis em poses paralisadas; o problema é que necessitamos de beleza e, na medida em que somos o que olhamos, conservamos algo da crença milenar, relembrada por Brodsky em seu livro sobre Veneza, que aconselhava a mulher grávida a olhar para belos objetos caso desejasse beleza ao seu filho;
 
como tudo que há no mundo se movimenta, criamos a arte como recurso à necessidade de instância, ao coágulo do tempo e, consequentemente, à calma; arquitetura, pintura, escultura podem ser formas de produção de imagens fixas; a fotografia também, muito embora, diversamente das outras três, pode demandar nada mais do que um simples instantâneo para a captura de algo que lhe é exterior; sendo assim haveria possibilidade da beleza habitar um fenômeno de superfície como esse? para servir de morada à beleza não seria necessário mais tempo de produção sob risco de uma queda no vácuo? por outro lado, quem disse que a beleza seja, afinal, necessária?
 
as fotos / desenhos / gravuras de Rosângela Dorazio comentam esses impasses;  sobrepassando a condição das fotos como espelho de imagens mortas, um plano de inflexão do mundo que atua como depósito de instantes, a artista risca parcialmente cada uma delas, ataca com uma ponta seca, um lápis que prefere sequer trocar grafite com a superfície, os renques de árvores e de prédios que margeiam lagos, parques e veredas; vai dilacerando o papel que serve de suporte aos arranjos orgânicos e geométricos, escarificando-os a maneira de um gravador que abre sulcos numa chapa de metal ou madeira através de estiletes e burís;
 
a artista destrói as imagens quase sempre deixando um rastro delas nos reflexos silenciosos de lagos e poças; as imagens, agora flutuando em superficies líquidas, carregam consigo o eco de imagens que não mais existem, o que serve como demonstração da impossibilidade de reter o visível, de que toda fotografia fundada na lógica do documento e do registro acena uma ilusão tão concreta quanto a nitidez das imagens estampadas.
 
não há nada lá agora, diz-nos Rosângela sobre suas fotografias, o que também vale para as fotografias em geral; havia e, no seu caso, a prova está em sombras e reflexos; e porque quer que haja, porque não se resigna a essa impassividade tão bela quanto ôca, a artista risca com violência as imagens, dilacera-as de modo a pretender vivificá-las, mesmo que o seu miolo seja essa matéria branca, inexpressiva, desimportante, agora encrespado, excitado pelos gestos, a beleza se desfaz, descongelada pela energia que volta a fluir.

Agnaldo Farias, 2012

 

PHOTOGRAPH, DRAW, ENGRAVE, LACERAT

The pretension of photography, as it is known, is the suspension of time, a death sentence to a landscape, a person ́s face, trivial or unique things and events, it doesn ́t matter, something that the camera, simple or sophisticated, fixes in its interior, subtracting the movement that drags everything to the confines of days and nights; and there cannot be beauty in the movement, because it would border the stability of architecture, the portraits made on canvass and the first photographs, which demanded endless hours from models in poses; the problem is we need beauty, and as we are what we see, we keep somethingfrom the millennial belief, remembered by Brodsky in his book about Venice, who advised the pregnant woman to look at beautiful objects if she wanted her child to be beautiful;


As everything in the world moves, we create art as a resource for our need of instancy, a time clot, and therefore calmness; architecture, painting and sculpting may also be ways of producing fixed images; so can photography, although it can demand nothing more than a simple snapshot to capture something that is in its exterior; having said that, could beauty inhabit a surface phenomenon like this? to serve as a dwelling to beauty wouldn ́t a longer production be needed to prevent a vacuum ?

On the other hand, who said that beauty is necessary? the photos/ drawings/ prints by Rosângela Dorazio comment on this impass; surpassing the condition of photos as mirror of dead images, a world inflexion plan acting like a deposit of instants, the artist traces each of them, strikes them with a dry point, a pencil that chooses to barely exchange graphite with the surface, the rows of trees and buildings that surround lakes, parks and paths; she lacerates the paper that acts as support to the organic and geometric arrangements, scarring them as a printer who makes grooves on a metal or wooden sheet with stylets or gravers; the artist destroys the images often leaving their traces in the silent reflections of lakes and puddles; the images now floating on liquid surfaces carry the echo of images that no longer exist, which demonstrates the impossibility of retaining what is visible and that every photograph based on the logics of the document conveys an illusion as concrete as the clearness of the printed images.

There ́s nothing there now, Rosângela tells us about her photographs, which is also true for photographs in general; there was and, in her case, the evidence is in shades and reflections; and because she wants something to be there, because she doesn ́t resign herself to this impassivity that is as beautiful as it is hollow, the artist traces the images with violence, lacerates them so as to vivify them, even if their core is this inexpressive, unimportant white matter now ruffled, excited by the gestures; beauty now undoes itself, defrosted by the energy that returns to flow.

Agnaldo Farias, 2012


o que sobra

Son of man, You cannot say, or guess, for you know only A heap of broken images, where the sun beats, T. S. Eliot

Rosangela Dorazio tem uma extensa experiência com a gravura. Domina a arte de subtrair matéria para criar a matriz, depurar a imagem, produzir o seu duplo. Entretanto, ao contrário de muitos artistas que se enveredaram por esse campo tradicional, não tem um apego purista à técnica, não guarda nenhum romantismo com relação ao fazer esmerado com que frequentemente se associam os guardiães dos procedimentos intrincados das diversas maneiras de gravar.

Faz isso não por desconhecimento ou desprezo, mas porque sua pesquisa a leva a colocar no centro da sua produção o lugar difícil do fazer artístico e da imagem no tempo em que vivemos. Sabe que reivindicar para a arte o estatuto

de um fazer exemplar, modelo para as outras ações humanas, nos dias de hoje, é tão problemático quanto acreditar na capacidade de comunicação direta da imagem. São tempos turvos, em que a ação humana não mais capaz de gerar exemplaridade e o meio já deixou há tempos de ser a mensagem.

Dorazio enfrenta a linguagem de um ponto de vista contemporâneo. Tem plena consciência de que as imagens são híbridas, feixes de sentido muitas vezes contraditórios e conflitantes. Ora vestigiais, ora ainda poluídas de referências, são resíduos de outras imagens, pré-imagens e pós-imagens de um mundo que não se deixa fixar com clareza, que resiste, com profunda melancolia, à formalização, incapaz de escapar do processo de objetualização que o transforma em fetiche.

Os trabalhos que a artista reúne nessa exposição partem da fotografia, luz gravada sobre uma superfície. Mais uma vez não é a técnica fotográfica que interessa Dorazio. A fotografia comparece não em suas ricas gradações de luz e sombra, na qualidade do foco ou da composição, mas sim por certas propriedades generalizantes da imagem produzida por meio dessa linguagem. No senso comum, fototografias podem ser vistas como registro, em que o médium passa quase despercebido.

Por isso mesmo, a artista parte de fotos de paisagem banais, genéricas, que guardam - nas cenas capturadas, nas angulações da lente, no enquadramento, na luminosidade – algo do caráter inócuo das imagens dos postais ou folhinhas de calendário.

São imagens feitas para desviar o olhar para lugares imaginários, imagens da expectativa, da fuga, do sonho. Nelas, não se olha realmente o visto. Ele é dado que remete ao não visto, ao almejado, ao ausente.

As intervenções feitas pela artista sobre as impressões fotográficas explicitam o impasse entre a percepção e a imaginação, entre a experiência concreta e a projeção idealizada. Retiram das paisagens aquilo que poderia caracterizá-las, indicando precisamente os vazios desses lugares do desejo irrealizado.

Intervindo sobre o suporte fotográfico, Dorazio não procura restituir o contato com imagens particulares, mas reter o que nelas há de geral, não de genérico. Aquilo que não muda, que permanece, que é constante. O chão, o céu, a linha do horizonte. Apagando por meio da intervenção, destruindo a vista aparentemente inócua da qual parte, a artista desbasta a imagem pré-formada em busca de uma espécie de grau-zero da percepção.

Seu gesto pode ser suave. Por vezes, imprime com os instrumentos de gravação sulcos pacientes, criando arabescos abstratos que transbordam os limites da superfície onde antes havia formas figuradas. Mas também pode ser enérgico, quase violento, rasurando o papel, riscando e rasgando aquele suporte, agredindo as formas fixadas, num gesto quase iconoclasta

Restituir o direito de ver o vazio, de nos deparar com o limite da ausência de forma e de sentido, esse parece ser o objetivo das estranhas e perturbadoras gravuras de Rosangela Dorazio. Elas nos obrigam a encarar a waste land em que nos encontramos, todos.

Fernanda Pitta

 

PAISAGEM, NATUREZA MORTA E RETRATO

Para alguns estudiosos da geografia, a paisagem é a apreensão do mundo de forma individual. Já Milton Santos afirma: “a paisagem é o conjunto de formas que, num dado momento, exprimem as heranças que representam as sucessivas reações localizadas entre homem e natureza”. Ao longo da história, as percepções sobre a paisagem foram se modificando: do recorte espacial abarcado pelo olhar até a paisagem interior. A geografia cultural, por exemplo, atribui ao expectador a percepção e valorização de uma determinada paisagem.

Ao trabalhar sobre cartões-postais alterando as paisagens originais (icônicas), Rosângela Dorazio não só cria uma nova geografia do olhar, como modifica o registro, com incisões e rasgos. Ao alterar a matéria, a falta promove uma discussão sobre o lugar do vazio, do desejo, da publicidade, do ideal. Se levarmos em conta que os 62 postais foram colecionados pela artista ao longo de diversas viagens, em lugares visitados por ela, a questão afetiva fica ainda mais complexa e levanta mais questões.

Já a obra “Partido” leva similar princípio ao extremo, mas explorando a lógica do postal de outra maneira. A partir de uma fotografia realizada com Fábio Furtado, Rosangela escolheu uma cena, não de um monumento ou de uma construção marcada pela arquitetura, mas uma visão generosa de um cotidiano em um parque.

A presença de pessoas dá um caráter narrativo, prosaico, agravado pelas escolhas do que “fica”ou do que “sai” – e como. Os desenhos que se formam, o branco dos rasgados, o preto dos fundos, tudo se funde de forma própria, sujeito a riscos e dúvidas. A fragmentação do trabalho em oito partes dá autonomia poética a cada uma delas e mantém, no entanto, uma unidade de sentido que só pode ser alcançada com o todo. As marcas dos gestos, dos diferentes tipos de gestos pictóricos, atribui amplas conotações a cada um dos fragmentos. Não poderia deixar de mencionar o casal apartado por um corte, mantido em cena mesmo contra protestos de romantismo exacerbado.  Mas para Rosangela, ao contrário, justamente aí reside a solidão.

Não à toa, espacialmente, os 62 “Postais” abarcam o grande “Partido”. Eles representam um olhar e um caminhar de intervenções, que parte do interior (de duas capelas) e segue em direção ao exterior, do colorido para quase o monocromático, de intervenções pontuais para múltiplas (para a rua). Os autorretratos em monotipia apresentam um olhar para o interior, numa procura clássica por representar estados de espírito, da aparente calma ao outro extremo, por meio de fotografias que fez dela mesma – com escritos sobre a matriz, impressos ao revés, criando provas únicas, sem edição.

A instalação “Aos pares” mostra equilíbrios em constante tensão, disfarçados em formas suaves e familiares. Dessa maneira, Rosangela estabelece uma discussão sobre encontros e desencontros, encaixes sutis ao risco do instante. Realizada com materiais industriais produzidos em escala, esta instalação pode ser lida como “uma natureza morta contemporânea, que não pode ser cristalizada”, nas palavras da artista.

“Casa das armas” traz desenhos de arquitetura rígidos, feitos no chão com bico de pena, borrando a forma arquitetônica com café, para depois, dar sequência à ação de fazer e desfazer a ação inicial. Com isso, as folhas de papel-manteiga se enchem de fluidez e movimento, contrastando com necessária rigidez das tesouras e dos demais elementos estruturais.

Ao longo do percurso expositivo, Rosângela Dorazio apresenta trabalhos de diferentes épocas, propondo diálogos de delicadezas e inquietações sobre o caminhar – e sobre o registro e a percepção desse trajeto. O designer e poeta japonês Katsumi Komagata, pioneiro no uso de papéis muito frágeis em livros para crianças, diz: “Faço livros sensíveis porque sempre quis mostrar que as coisas são finitas”. Na obra de Rosângela, a fragilidade é marca de uma procura, cujo resultado ultrapassa a materialidade do objeto.

Rodrigo Villela

 

LANDSCAPE, STILL LIFE AND PORTRAIT

For some of those who study geography, the landscape is a way of apprehending the world in an individual manner. Milton Santos states that: "the landscape is a set of forms that, at any given moment, express the heritage which is the representation of successive reactions located between man and nature." Throughout history, perceptions of the landscape have become modified: from the spatial area encompassed by the perspective of the inner landscape. Cultural geography, for example, attributes the spectator with a perception and appreciation of a determined landscape.

 

As Rosângela Dorazio works on her postcards, changing the unique (iconic) landscapes, she is not only creating a new geography over which to cast an eye, but is also modifying the record of it, with incisions and tears. By altering the material, what is left out stimulates a discussion regarding the places of emptiness, of desire, of advertising, of what is ideal. When we remember that the artist collected the 62 postcards over a number of trips to places she visited, so the emotional issue becomes even more complex and raises more questions.

Her artwork entitled “Partido” (Departure) takes a similar principle to the extremes, but explores the logic of the postcard in another manner. Using a photograph produced with Fábio Furtado, Rosângela chose a scene, not of a monument or an architecturally striking building, but a broad vision of everyday life in a park. The presence of people provides a prosaic, narrative characteristic, intensified by the choices of what "stays" or what "goes" - and how. The drawings that are formed, the white of the torn sections, the black of the backgrounds, everything merges in its own particular way, subject to risks and doubts. The fragmentation of the work into eight parts provides each of them with poetic autonomy and yet nonetheless, maintains a single unit of meaning, which can only be achieved with the work as a whole.

The marks of the gestures, of the different types of pictorial gestures, assigns wide-ranging connotations to each of the fragments. It would be impossible not to mention the couple separated by a cut, maintained in the scene even against the protests of exacerbated romanticism. Nonetheless, on the other hand, for Rosangela, it is precisely herein where loneliness lies.

It is hardly surprising that, spatially, the 62 " Postais" (Postcards) encompass the great "Partido." They represent a vision and a journey of interventions that start out from the inside (of two chapels) and moves towards the outside, from color to almost monochrome, from single interventions to manifold (to the street).

The monotype self-portraits present a look towards the interior, a classic search to represent states of spirit, from apparent calm to the other extreme, through photographs taken of herself - with things written across the matrix, printed back to front, thus creating unique unedited evidence.

The installation "Aos pares" (In Pairs) demonstrates equilibriums in constant tension, disguised in soft, familiar shapes. Thus, Rosangela establishes a discussion on agreements and disagreements, subtle insertions to the risks of a moment. Made with mass-produced industrial materials, this installation, in the words of the artist, may be interpreted as "contemporary still life, which cannot be crystallized".

“Casa das armas” (House of weapons)brings strictly architectural drawings, produced on the ground with quill pen and ink, blurring the architectural form with coffee, followed afterwards by a sequence wherein there is an action to do and undo the initial action. Thus, the sheets of wax paper are filled with fluidity and movement, contrasting with the necessary rigidity of the scissors and other structural elements.

Throughout the exhibition, Rosângela Dorazio presents work from different periods, proposing dialogues regarding the flimsiness and inquietudes of the journey – and of the registration and perception of this pathway. The Japanese designer and poet Katsumi Komagata, who pioneered the use of very fragile paper in children’s books, says: "I make sensitive books because I always wanted to show that things are finite." In Rosângela’s work, fragility represents a search, the result of which exceeds the materiality of the object.

Rodrigo Villela


O EMBATE POÉTICO ENTRE IMAGEM E MATÉRIA

A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Augusto dos Anjos

Rosângela Dorazio apresenta, nesta exposição, as séries “Do Verbo Amar” e “Escalavrados”. Nelas, a artista mostra um mesmo princípio em modos diferentes e em determinados aspectos, opostos. Trata-se da ênfase sobre a ação: escalavra o suporte material da imagem, ou entorna suavemente café sobre aguadas de nanquim. Introduz um ponto de interferência sobre o que já se constituía como imagem gráfica ou fotográfica, que se desfaz e refaz qual novo paradigma de si. Apresenta-se como outra, que já não é mais a imagem construída sobre códigos confortáveis, mas sua negatividade ou avesso.

Assim, Rosângela Dorazio desestabiliza paisagens interiores e exteriores, sujeitas a interferências acidentais ou nem tanto... Pois o gesto tem início na intenção.
O café das memórias olfativas, afetivas, servido na cama ou na mesa para um, dois ou três, derramado e sujo, respingado de carícias e mágoas. Convívio diário, intimidade, solidão, relação a dois, triângulos amorosos, encontros, desencontros e toda sorte de arranjos dinâmicos e jogos do devir dos relacionamentos. Os excessos extravasados, escorridos, recolhidos e as manchas deixadas. O previamente traçado em figuras familiares, marcado pela interferência imprevisível de um gesto repentino. O desenho das relações altera-se diante do inesperado. O aguado e o entornado encontram-se sobre uma superfície, sobreposições de um cotidiano complexo.

Entre o céu e a terra, um hiato que vai se abrindo. O mundo das coisas que se desfaz, escalavrado. Já não é a suavidade líquida do café escorrido (mas que queima e mancha); agora o gesto se torna incisivo. Goiva que fere e revela a carne branca sob a pele da imagem. Memória da presença que se reconstitui na imaginação através dos indiciais reflexos aquáticos, resíduo de Narciso ou isto não é uma paisagem?

Entre aparências e desaparições, marcas gestuais. Na imagem subtraída, vemos mais. Ao agir estrategicamente sobre a imagem, Rosângela Dorazio gera um campo perceptivo onde o jogo de presença e ausência requer por sua vez uma postura ativa também por parte do espectador.

O apagamento, neste caso, se opõe à anestesia, já que conduz à aesthesis. É preciso apagar para estimular nossos sentidos anestesiados pela profusão de imagens no mundo contemporâneo. Ao mesmo tempo, ao talhar seu suporte, a imagem é desmistificada.  

Embora o gesto dos Escalavrados seja rígido, a paisagem se torna fluida. Mundo sólido que se desmancha aos nossos olhos, no ar e na água. As figuras da série “Do Verbo Amar”, corpos sólidos que contém líquido fumegante – desejo que transborda e entorna sobre si, mancha e desmancha. Fluxos e refluxos das emoções. Rotinas alteradas.
Derramar suavemente pode deixar tantas marcas quanto os cortes agressivos. E não há como escapar incólume.

Renata Wilner
Texto para a Exposição ESCALAVRO E ENTORNO de Rosângela Dorazio / Julho de 2012

 

THE POETIC CLASH BETWEEN IMAGE AND MATERIAL

The hand that caresses is the same that casts a stone.
Augusto dos Anjos

In this exhibition, Rosângela Dorazio presents the series “Do Verbo Amar” (From the Verb to Love) and “Escalavrados” (Damaged). Here, the artist demonstrates the same principles in different manners and in certain opposite aspects. She deals with the emphasis on action: scraping the support material of the image, or gently spilling coffee over the watery slurries of Naquin. A point of interference is introduced onto that which already constituted a graphic image or photograph, which is undone and redone within its own new paradigm. It introduces itself as another, which is no longer the image constructed on comfortable codes, but its negativity or antithesis.

Thus, Rosângela Dorazio destabilizes interior and exterior landscapes, subjected to accidental ...or almost accidental ... interferences. Since the gesture is initiated with intention.

The coffee of olfactory, affective memories, served in bed or on a table for one, two or three, spilt and messy, spattered with caresses and sorrows. Daily contact, intimacy, loneliness, a couple’s relationship, love triangles, meetings, disagreements and all sorts of dynamic arrangements and games that come from relationships. The extravasated, drained, collected excesses and the stains they leave behind. A previous sketch with familiar figures, marked by the unpredictable interference of a sudden gesture. The drawing of relations becomes changed when faced with the unexpected. The watery and the spilt come together on the surface, overlaying the complexity of everyday life.

Between heaven and earth, a hiatus is opening. The world of things that is undone, bruised. This is no longer the smooth liquid of drained coffee (but that which burns and stains); now the gesture becomes incisive. Its gouge wounds and reveals the white flesh under the skin of the image. Is this memory of presence, which is reconstructed in the imagination, through the indexical aquatic reflections, the residue of Narcissus, or is this not a landscape?

Marks of gestures between appearances and disappearances. In the subtracted image, we see more. By acting strategically on the image, Rosângela Dorazio generates a perceptual field where the game of presence and absence, in turn, also requires the viewer to adopt an active stance. Erasure, in this case, is opposed to anesthesia, since it leads to aesthesis. It is necessary to erase in order to stimulate our anesthetized senses by the profusion of images in the contemporary world. At the same time, while carving out its support, the image is demystified.

Although the gesture of “Escalavrados” is rigid, the landscape becomes fluid. A solid world that dissolves before our eyes, into the air and into the water. The figures in the series "Do Verbo Amar", solid bodies that contain steaming liquid – desire that overflows and spills onto itself, staining and dissolving. The ebb and flow of emotions. Changed routines.

Gentle spillage may leave many marks, much like aggressive cuts. And there is no way to escape unscathed.

 Renata Wilner
July 2012


PINTURA DEMASIADAMENTE HUMANA

Um passeio pelas correspondências visuais de Rosângela Dorazio

As malas diretas adentram em nossas casas como se fossem melhores amigas.
Invadem sem chamado.
Dizem em que investir, o que vestir, para onde ir.
Fazem de conta que nos conhecem e, como as cartas que há muito deixamos de receber, se travestem de intimidade.
Em vez de atirá-las contra a lata de lixo ou aceitá-las passivamente, a mineira Rosângela Dorazio presta atenção ao que é colocado debaixo de sua porta.
Colhe o que lhe chama atenção e nos devolve agora na forma inversa da publicidade, convidando-nos a sua intimidade, seus desejos, sua poesia.

Não somos meros receptores, diz a artista em sua nova série, intitulada Pintura sobre mala direta.
Tem alguém ali detrás da porta.
Alguém que chora, que sonha, que trabalha, que dorme, que existe para além das etiquetas impressas em offset. E é ela, com o pincel melado de tinta, roçando as mãos inquietas sobre os postais multiplicados, quem inscreve sua condição humana.
A pintura surge como uma necessidade vital, dessacralizada sobre o papel, que aqui serve de exercício para a incansável e meticulosa reconstrução de uma realidade dada.

Imagens que seriam meros motivos de fetiche – estampado, padronizado – ganham a cada pincelada novas formas, cores e texturas.
Como relatos pessoais, cenas despontam fragmentadas, sobrepondo-se aos verbos imperativos da publicidade, às ilustrações enviadas pelo correio.
Peitos, braços, pernas, pés e rostos lânguidos, quase todos femininos, emergem da superfície para revelar o terreno da privacidade.
Esse que a propaganda tenta surrupiar artificialmente.
Nesse jogo de recortes criativos, a artista deixa transparecer intencionalmente alguns elementos das peças publicitárias, a fim de que travem um diálogo sorrateiro com suas figuras de carne e osso.
O verbo passar por cima aqui não quer dizer apagar, mas sobrepor com certa imposição artística o gestual das mãos e das tintas sem esconder alguns pontos visuais que lhe captaram a retina nos papéis impressos.

Rosângela não é pintora por convicção, nem por escolha profissional. “Inscrita” nas rotulações contemporâneas simpáticas às diferentes mídias, está mais dada à gravura. Desde a adolescência, ou pouco depois, não se entregava ao cheiro das tintas. Talvez por isso poderíamos pensar que seu arsenal pictórico, resvalado nesta série, tenha surgido de forma tão espontânea. Mas foi tudo milimetricamente estudado, como nas chapas de impressão, o que não tira da pintura que aqui emerge a melhor de suas facetas: a organicidade. Em tons expressivos. Vivos.
A história já viu tanto embates quanto encontros entre a arte e a publicidade. Os mais famosos foram “alianças estratégicas” dentro da própria lógica da mass media. Basta lembrar alguns nomes da pop art, que extraíram via “propaganda” seu substrato criativo. Uma maneira de mostrar que há um lugar nisso tudo para a arte, capaz de se reinventar a cada bombardeio visual. Se refaz, se transfigura, se regenera. Tenta tirar dos olhos do mundo a sua incapacidade de ver.

Talvez Rosângela não queira ir tão longe. Mas inscreve o seu gesto de artista, ao dar às cores cinzentas da vida cotidiana um novo significado. Suas pinturas bem que podiam seguir o destino das malas diretas: circular pelo mundo, como fez a arte postal, e quem sabe ajudar o correio a voltar a ser um veículo de mais pulsação e afetividade.

Olivia Mindêlo, 2009
 

EXCEPTIONALLY HUMAN PAINTING

A journey through Rosângela Dorazio’s visual correspondence

Advertising flyers appear at our homes as though they were our very best friends.
They invade without an invitation.
They tell us what to invest in, what to wear, where to go.
They pretend to know us and, much like the letters we have long since stopped receiving, they attire themselves with intimacy.
Instead of throwing them straight into the trash or just passively accepting them, Rosângela Dorazio, from the state of Minas Gerais, pays great heed to what is pushed under her door.
She gathers whatever attracts her attention and now returns it to us in an inverse form of advertising, inviting us towards her intimacy, her desires and her poetry.

We are not only mere receivers, says the artist in her new series, entitled “Pintura sobre mala direta” (Painting on advertising flyers).
There is someone over there behind the door.
Someone who cries, who dreams, who works, who sleeps, who exists beyond these labels printed in offset. And it is she, with her paint-laden brush, skimming those unquiet hands over the multiple postcards, who inscribes her human condition.  
The painting emerges like a vital necessity, desacralized on the paper, which here serves as an exercise for the untiring, meticulous reconstruction of a given reality.
Images, which could be mere objects of fetishism – stamped, patterned – with each stroke, take on new forms, colors and textures.
Like personal accounts, fragmented scenes emerge, superimposing the imperative verbs of advertising, onto the illustrations sent through the post.
Chests, arms, legs, feet and languid faces, almost all of them feminine, appear from the surface to reveal a terrain of privacy.
Onto which the advertising attempts to impinge artificially.
In this set of creative croppings, the artist deliberately allows certain elements of the advertising details to transpire, in order to become entrenched in a dialogue with her figures of flesh and bone. Here, the verb to paint over does not mean to paint out, but rather, with a certain artistic imposition, to superimpose the gesture of hands and paints without hiding some of the visual details that had been caught by the eye on the printed papers.
Rosângela is not a painter through conviction, or through professional choice. "Inscribed" across contemporary labelling and sympathetic to different media, she is more inclined towards engraving. Since adolescence, or shortly afterwards, she never succumbed to the smell of paint. Maybe because of this, we are inclined to think that her pictorial arsenal, slipped into this series, has emerged so spontaneously. Nonetheless, everything has been minutely studied, exactly like engraving plates; however, this does not remove from the painting that which emerges as its best facet: its organicity. In expressive tones. Vibrant.

History has revealed both clashes and encounters between art and advertising. The most famous have been the "strategic alliances" from within the very logic of mass media. Suffice it to recall a few names from pop art, who through "advertising" extracted its creative substrate. This is one way of demonstrating that there is a place for art in all of this, capable of reinventing itself with every visual bombardment. It is remade, transfigured, regenerated. It attempts to remove from the eyes of the world their inability to see.  

Perhaps Rosângela does not wish to go so far. But it is inscribed in her artistic gestures, by giving new meaning to the greyness of everyday life. Her paintings could well follow the fate of the circulars: circling the world, as did postal art, and who knows it may even help the mail services to go back to being a more pulsating, affective vehicle.

Olivia Mindêlo, 2009

 
Text for the Exhibition ESCALAVRO E ENTORNO (DAMAGE AND SPILLAGE) 
by Rosângela Dorazio